Escassez de meios humanos e respostas socias são algumas das lacunas na proteção de crianças e jovens

Entrevista: Ana Sobral, Presidente da CPCJ

A violência doméstica constitui uma realidade social intolerável e inadmissível”

Em abril assinala-se o Mês de Prevenção dos Maus Tratos na Infância. Qualquer criança ou jovem pode ser alvo de violência, seja ela física, psicológica ou sexual, presencialmente ou em contextos digitais, independentemente da sua idade, sexo ou estatuto socioeconómico. A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) desempenha um papel vital na sociedade, sendo uma entidade de intervenção especializada que visa garantir os direitos fundamentais de crianças e jovens em situações de perigo. O Jornal “O Leme” foi conversar com Ana Sobral, Presidente da CPCJ do Concelho, que desempenha um papel crucial na coordenação e implementação das acções e políticas que visam proteger e promover os direitos das crianças e jovens do Concelho, onde nos falou da violência doméstica, da escassez de meios humanos e respostas sociais que são insuficientes para apoiar as famílias.

Leme: No dia 7 de março, assinalou-se o Dia de Luto Nacional pelas Vitimas de Violência Doméstica! Como Presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Santiago do Cacém, como vê este dia?

CPCJ – O Conselho de Ministros aprovou, no passado dia 28 de fevereiro, de acordo com uma proposta da Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Mariana Vieira da Silva, o decreto que declara o dia 7 de março como dia de luto nacional, em homenagem às vítimas de violência doméstica e às suas famílias.

A Ministra considera que é “um dia em que não devemos apenas homenagear as vítimas e manifestar a nossa solidariedade com as suas famílias, mas também renovarmos, coletivamente, o nosso propósito de continuar o combate a uma realidade intolerável”. E eu estou totalmente de acordo com ela. Na verdade, A violência doméstica constitui uma realidade social intolerável e inadmissível, exigindo uma ação determinada e a congregação de esforços de toda a sociedade para defender, de forma intransigente, a integridade e a dignidade das mulheres.

Todos os anos o número de pessoas, na sua grande maioria mulheres, mortas em contexto de violência doméstica é absolutamente assustador. Só este ano já morreram mais de 10 mulheres nessas circunstâncias, e de acordo com dados revelados pela GNR, PSP e PJ, já foram detidas mais de 120 pessoas suspeitas de crimes relacionados com violência doméstica.

Porém, as situações de violência doméstica nem todas conduzem à morte, mas conduzem, de certeza, à dor, ao sofrimento, à depressão, à desestruturação familiar. É importante, também, lembrar que para além das vítimas adultas, existem as crianças e os jovens, que, não sendo responsáveis por nada, são os que mais carregam os traumas destas vivências tão duras para o resto da sua vida.

Portanto, assinalar o Dia de Luto Nacional pelas Vitimas de Violência Doméstica é deveras importante, para sensibilizar todos para este flagelo, mas, porventura mais importante, sensibilizar para a necessidade absoluta de perseverar nesta luta.

L – As vítimas mortais registadas em Portugal nos últimos anos, em contexto de Violência Doméstica, demonstram que há ainda um longo caminho a percorrer.

CPCJ – Sim, sem dúvida. No meu ponto de vista, esse caminho passa pelas campanhas de sensibilização feitas pelas entidades que intervêm nesta área, designadamente os Serviços de Apoio à Vítima, entre as quais destaco a APAV, que tem desenvolvido um importante trabalho tanto na remediação, apoio direto às vítimas, como no da prevenção, através das campanhas que promovem junto da população e que, frequentemente são difundidos através dos órgãos de comunicação social.

Destaco, também, o serviço que atua na nossa zona, que é o Desigualdades, da Associação Intervir, que presta apoio direto às vítimas e filhos menores e que tem desenvolvido, já há alguns anos, um trabalho reconhecidamente útil e meritório no território que abrange, que vai desde Alcácer do Sal até Sines.

Na minha perspetiva, é fundamental continuar a investir na intervenção junto dos jovens porque a violência no namoro é um fenómeno bastante preocupante. Se explorarmos muitas das situações graves de violência doméstica entre casais, concluímos que os insultos, o controlo coercivo e até as agressões físicas já aconteciam durante o namoro.

Outro aspeto imprescindível, na minha opinião, é a intervenção o mais precoce possível junto das nossas crianças, no que diz respeito à educação para a cidadania e para a não violência, seja ela de que tipo for. Só a educação poderá melhorar, quiçá salvar este mundo.

L – De acordo com os números divulgados, há um aumento do número de denúncias por violência doméstica. O que pode explicar este cenário?

CPCJ – O fenómeno da violência doméstica sempre existiu. Todavia, durante muito tempo, só era percetível para os familiares ou vizinhos mais próximos da vítima, que se calavam, uns por medo, outros por convicção de que era legítimo que uma mulher e os seus filhos se submetessem à vontade do pater famílias, e que se ela ou eles “apanhavam era porque mereciam”. Aliás, o casamento era para toda a vida, bom ou mau.

Cheguei a ouvir algumas mulheres da geração da minha mãe dizerem que “tinham tido a sorte de ter um bom marido, que nem lhes batia, nem nada.” O conceito de violência doméstica não existia e muito menos os comportamentos violentos em contexto familiar eram considerados crime. O regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas e a respetiva Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro é de 2009.

Na minha perspetiva, o aumento das denúncias estará diretamente relacionado com a maior consciencialização da população relativamente a esta problemática. As campanhas de divulgação e sensibilização realizadas pelas entidades responsáveis têm vindo a ter, certamente, um papel importante nesta consciencialização, não só das pessoas que têm conhecimento de casos, tal como das próprias vítimas, o que tem levado, felizmente, na minha opinião, ao aumento do número de denúncias.

L – Quantas vítimas de Violência Doméstica recebeu a CPCJ de Santiago do Cacém até ao fim do ano de 2023?

CPCJ – No ano transato, trabalhámos cerca de 150 processos com esta tipologia, o que corresponde a 150 crianças ou jovens. Contudo, temos ainda de ter em conta as vítimas adultas, que não são contabilizadas nos nossos processos. Para a dimensão do nosso Concelho, são números significativos.

 

L – Em relação às crianças que crescem nestes contextos de violência, considera que lhes é assegurada a proteção devida?

CPCJ – Apesar de todo o esforço e empenho dos profissionais envolvidos, CPCJ, Tribunal de Família e Menores, Entidades com Competência em Matéria de Infância e Juventude (escolas, polícia, centros de saúde, hospitais) considero que também neste campo ainda há muito a fazer.

L  – Mas ainda há muitas lacunas na proteção das crianças? O que acha que seria possível fazer mais?

CPCJ – Em primeiro, lugar a escassez de meios humanos é gritante e todos sabemos que sem ovos não se fazem omeletes, embora todos os dias nós o façamos.

Concomitantemente, as respostas sociais são manifestamente insuficientes para apoiar as famílias, tal como as respostas ao nível da saúde, nomeadamente no que respeita à saúde mental.

Relativamente ao caso específico da violência doméstica em concreto, as formas de que dispomos para proteger as nossas crianças, colidem, frequentemente, com o respeito pelos seus direitos. Pode parecer estranho, mas acontece. Posso dar um exemplo concreto, para se perceber melhor. Imaginemos uma família em que o pai é o agressor e a mãe a vítima dos maus tratos. Há discussões, gritos, injúrias, ofensas, agressões físicas e afins. As crianças assistem ou, mesmo que não assistam aos factos, estão sujeitas a este ambiente familiar. Alguns jovens mais velhos, chegam mesmo a intervir para conter um dos progenitores e defender o outro. Obviamente, é necessário garantir, de imediato, a proteção destas crianças, de forma a proporcionar-lhes um ambiente securizante e protetor.

Mas como fazer, se o pai se recusar, o que acontece na maioria das vezes, a sair da casa de família? Como a justiça ainda não atuou em relação ao agressor, o que nos resta fazer é afastar as crianças. Na maioria das vezes a mãe também aceita sair e já é bom se existir família ou amigos que os possam acolher. Se o agressor for realmente muito perigoso, é necessário que a mãe e os seus filhos sejam acolhidos em Casa de Abrigo específica para vítimas de violência doméstica, em sitio sigiloso. E onde fica o trabalho da mãe, a escola dos filhos, a sua casa, os seus amigos? Na minha perspetiva, as nossas crianças e jovens são duplamente vítimas.

L – Aproxima-se o Mês da Prevenção dos Maus Tratos Infantis. O que é a Campanha do Laço Azul?

CPCJ – A Campanha do laço azul é uma das formas mais habituais de se assinalar o Mês da Prevenção dos Maus Tratos Infantis, anualmente, no mês de abril.

Inclui a distribuição de laços e fitas azuis, a iluminação de edifícios públicos, a execução de laços e outras peças pelos alunos do Concelho e a realização de um laço humano, em que todos vamos vestidos de azul.

No âmbito deste mês também são realizadas outras atividades que oportunamente divulgaremos.

L – E porquê azul?

CPCJ – Azul, porque as nódoas negras, passado algum tempo sobre a agressão, começam a ficar azuladas.

A cor azul e o laço azul assumiram o seu papel simbólico nesta luta contra os maus tratos infantis, a partir de 1989, quando Bonnie Finney, uma avó norte americana amarrou uma fita azul na antena do carro, em homenagem ao seu neto, vítima mortal de maus-tratos. Com esse gesto quis “fazer com que as pessoas se questionassem”.

L – Quantos casos acompanhou a CPCJ de Santiago do Cacém, relativos a Maus Tratos Infantis, no ano passado?

CPCJ – Maus tratos puros e duros, é uma tipologia residual, felizmente. Porém, se considerarmos também a negligência, trabalhamos 56 casos.

L – Os meios humanos têm sido suficientes para o trabalho que é necessário fazer?

CPCJ – De forma alguma. Os meios humanos, atualmente, na CPCJ de Santiago do Cacém, são manifestamente insuficientes. No que diz respeito à prevenção, a chamada comissão alargada, temos todos os representantes previstos na lei, à exceção de uma associação de jovens, que ainda não encontramos no Concelho nenhuma que satisfaça os requisitos necessários e que seria extremamente importante termos, para nos dar a visão dos jovens sobre as atividades a desenvolver.

Na parte da remediação (os casos sinalizados) os recursos humanos estão muito aquém dos necessários. De acordo com a tabela de tempos de afetação que nos rege atualmente, deveríamos contar com os cinco membros de representação obrigatória afetados a 35 horas semanais. Nunca essa situação se concretizou, numa clara desobediência às orientações da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ). Somos apenas quatro comissárias, sendo que apenas as representantes do Município e do Ministério da Educação cumprem a afetação prevista. A Segurança Social faz-se representar com uma afetação de 14 horas semanais e o Ministério da Saúde também 14 horas. As IPSS nem se fazem representar na modalidade restrita.

L – Que mensagem gostava de deixar à população de Santiago do Cacém neste mês de prevenção dos maus tratos na infância?

CPCJ – Gostaria de alertar para o facto de que a proteção das nossas crianças e jovens é muito importante e não deve ser negligenciada por quem a deveria privilegiar.

Por outro lado, para além das entidades oficiais responsáveis, todos e todas nós, enquanto cidadãs e cidadãos devemos assumir as nossas responsabilidades e comunicar à CPCJ ou a qualquer entidade com competência em matéria de infância e juventude, todas as situações que cheguem ao nosso conhecimento e que ponham em causa a segurança, o bem-estar e o saudável desenvolvimento de uma criança ou de um jovem.

É bom que tenhamos sempre presente que as crianças não pediram para nascer, fomos nós que as colocamos no mundo e é da nossa inteira responsabilidade a sua proteção e a garantia do respeito pelos seus direitos.

Só para terminar, gostaria de informar que estamos disponíveis através de telefone, (269826205/961276491) email (cpcj.santiagocacem@cnpdpcj.pt), carta, ou presencialmente, no Edifício Cor de Rosa, antigo Liceu de Santiago do Cacém, na Rua do Parque, nº 12, 1º andar, em Santiago do Cacém, para vos esclarecer todas as dúvidas.

Leme: A violência é hoje um dos maiores problemas sociais do mundo. É dever da sociedade como um todo trabalhar em conjunto para travar e prevenir a violência contra crianças e jovens.

 

Caixas o que couber:

“…as situações de violência doméstica nem todas conduzem à morte, mas conduzem, de certeza, à dor, ao sofrimento, à depressão, à desestruturação familiar…”

“…as respostas sociais são manifestamente insuficientes para apoiar as famílias…”

“…existem as crianças e os jovens, que, não sendo responsáveis por nada, são os que mais carregam os traumas destas vivências tão duras para o resto da sua vida”.

“…para além das entidades oficiais responsáveis, todos nós, enquanto cidadãos devemos assumir as nossas responsabilidades e comunicar à CPCJ todas as situações que ponham em causa a segurança, o bem-estar e o saudável desenvolvimento de uma criança ou de um jovem”.

O Leme 850 / Março 2024