Uma expedição ao mundo das tartarugas!

A tartaruga-verde (Chelonia mydas) é uma espécie ameaçada a nível mundial. Eu tive a sorte de a conhecer na Ilha de Poilão, umas das ilhas pertencentes ao Arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau.

Em Setembro de 2017, acompanhada por dois amigos, decidi realizar uma expedição e seguir uma equipa de biólogos que, entre os meses de Agosto e Novembro, monta um Centro de Investigação provisório que se dedica ao estudo da vida e dinâmica de mais de 21 mil tartarugas marinhas que ai desovam, oriundas de todo o mundo. Foi uma experiência bem especial, aquela que, agora, vos quero partilhar. Viajámos de barco de Bissau para Bubaque (outra ilha do arquipélago), onde pernoitámos, e, somente no dia seguinte, apanhámos uma pequena lancha que nos levou à ilha de Poilão. Antes da chegada, fizemos uma breve paragem no  Parque Nacional Marinho João Vieira que está situado na parte sudoeste do Arquipélago dos Bijagós. O parque foi criado, em Agosto de 2000,  pelo IBAP e contém 4 ilhas principais (João Vieira, Cavalo, Meio e Poilão) e três ilhéus. Tem como finalidade a protecção da biodiversidade e dos ecossistemas insulares (tartarugas-marinhas, aves aquáticas, a valorização do património cultural Bijagó e o ecotorismo).

Já na ilha de Poilão, fomos recebidos pela equipa do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (IBAP) da Guiné-Bissau, que protege essa zona, permitindo que os animais marinhos que ai nascem regressem sempre ao seu ponto de origem, dando continuidade à reprodução da sua espécie. Conhecemos o Centro de Conservação (uma espécie de cabana-escritório improvisado construido em madeira e com telhado de palha) e tivemos uma pequena conversa/formação sobre a expedição que iríamos desenvolver e que  começaria no final desse dia, alargando-se até às 23horas (aproximadamente, mas sempre dependendo do volume de tartarugas que, nessa noite, chegariam à praia).

Instalámos as nossas tendas, onde passaríamos a noite e aproveitámos para conhecer um pouco da ilha, viver a água salgada e morna e tirar maravilhosas fotografias… a paisagem é, de facto, indescritível.

Preparámo-nos e, por volta das 19horas, dividimo-nos em duas equipas (cada uma com 3 pessoas) que teriam como objetivo sinalizar a presença das tartarugas (observando o seu processo de desova – em linguagem mais comum, parto-para deixar os ovos enterrados nalgum ponto do areal da ilha), acompanhar as crias que nasciam e conduzi-las ao mar (para que pudessem continuar com o seu ciclo de crescimento, evitando que fossem capturadas por possíveis predadores), bem como assinalar a localização dos ovos já depositados, anteriormente.

O cenário a que assistimos foi único e, simultaneamente, muito exigente e perfeccionista. Durante a noite, numa altura em que a temperatura desce e existem menos predadores, por perto, as tartarugas sentem-se mais seguras para circular e podem chegar às 500, prontas para alcançar a praia e desovar na areia, permanecendo cerca de 1 hora e escolhendo as zonas mais altas do areal para nidificar. Foi, verdadeiramente, impressionante assistir à sua chegada e ver como dezenas delas percorriam, muito lentamente e recolhidamente, a areia até tocar no ponto escolhido para desovar. Pesando cerca de 150 quilos e com 1 metro de comprimento ou mais, as tartarugas podem alcançar os 80 anos. Muito interessante quando os membros da equipa nos disseram que, muitas vezes, as próprias tartarugas pisam locais de desova já existentes, uma vez que não têm a noção de que está ai enterrado um futuro membro da sua espécie para eclodir e seguir o seu curso de vida. Dai a importância de sinalizar os locais de nidificação com uma estaca de madeira deixando uma etiqueta com a data da desova e o número de ovos ai enterrados, para, posteriormente, contabilizar aqueles que conseguem sobreviver ao ataque dos predadores (via aérea) ou ao descuido das próprias tartarugas que por  ai andam e os pisam sem intenção (via terrestre).

Basicamente, numa primeira fase, dedicámo-nos a visualizar e a somar os ovos dos locais já identificados como zona de nidificação e a contabilizar as tartarugas que chegavam à ilha. Existe uma classificação a considerar com várias siglas distintas, por exemplo RDI (rasto com desova ninho intacto) ou FIL (filhote de tartaruga) ou Ec (eclosão), entre outras que possibilitam o rastreio correcto das tartarugas.

Registámos perto de 100 tartarugas no nosso quadrante ( a outra equipa desenvolveu as mesmas acções noutro ponto da ilha), todas de diferentes tamanhos e umas a seguir às outras…recordo-me que tínhamos de contornar a areia constantemente, como um verdadeiro labirinto, já que à nossa frente surgiam cada vez mais tartarugas, dispersas e avançando, de forma muito pouco linear. Ao mesmo tempo, transportávamos um balde de plástico para ir depositando as pequenas crias que rompiam dos ninhos já escavados pelas progenitoras… Era impressionante ver as milhares de minúsculas tartarugas que rebentavam e que se perdiam em diversas direcções, dado que não tinham ainda o sentido de orientação necessário para saber onde se encontrava o mar… apesar de atraídas pelo brilho do mar elas ficam no areal e são entregues ao seu destino…são tão pequenas que podem caber 3 ou 4 numa mão. A nossa missão, no fundo, para assegurar a sua sobrevivência, consistia em recolhê-las, colocá-las no balde, contá-las e entregá-las ao oceano, já que a taxa de sobrevivência é muito reduzida, poucas são aquelas que atingem a idade adulta. Eram tão rápidas e mexiam-se tanto que, às vezes, até o processo de contagem se tornava complexo e algumas conseguigam escapar por entre os dedos (ainda assim registei aproximadamente 70 ou 80).  É uma sensação inesquecível assistir a este fenómeno e saber que, de alguma forma, contribuímos com a nossa pequena pegada para a manutenção da espécie.

Outro momento auge, foi vigiar e auxiliar a  dinâmica do parto (desova), em si, onde cada tartaruga, pode colocar 120 a 130 ovos, de cada vez, em cada ninho. Eu dediquei-me, especialmente, a uma tartaruga com a qual estabeleci uma relação de empatia, durante 2 ou 3 horas, começando pela fase da preparação, onde ajudámos a tartaruga a descomprimir com muita serenidade (facilitando a abertura das patas traseiras e a flexibilização da zona genital, onde a própria tartaruga vai tenteando e limpando, pouco a pouco, a areia, fazendo uma espécie de cova), seguida da observação da queda de cada um dos ovos que contávamos e registávamos num bloco de notas. É um processo muito moroso, em silêncio, onde podem cair 2 ou 3 ovos de cada vez, em minutos espaçados e conforme vão ocorrendo as contracções da tartaruga…eu contei mais de 130 ovos, durante as 2 horas de candura, paciência e dor de cada movimento da tartaruga. Finalizado o processo, a tartaruga estava realmente exausta e, para mim, foi algo muito especial pressentir como, cada vez, que lhe tocava na cabeça ou que lhe transmitia palavras de força e alento, a tartaruga olhava-me nos olhos transmitindo cansaço, persistência, alivio (no final), mas sobretudo carinho e gratidão pela minha presença…sinceramente eu sentia que a tartaruga me ouvia e captava a energia que lhe entregava, reflectindo eu que aquilo que nos distingue ou separa do reino animal não é assim tanto quando se trata de dar à luz e gerar uma nova vida… Fui incapaz de terminar o processo a meio e deixá-la sozinha. Decidi terminar a minha incumbência nocturna ao lado dela, enquanto a minha equipa se retirava e fazia a reunião conclusiva da expedição. De madrugada, ela ainda lá estava, bem mais recomposta e preparada para iniciar a sua migração para locais de alimentação distantes ou novas rotas, o seu objectivo ali estava cumprido.

Depois de uma tempestade tropical, onde tudo o que tínhamos estendido na corda de roupa improvisada e deixado na parte exterior das tendas voou a metros de distância, despertámos e observámos, por volta das 7 horas da madrugada, o regresso das últimas tartarugas ao oceano, depois de uma noite longa, quente e emotiva

Reportagem: Claúdia Carracha