Entrevista|Bruno Caetano – Produtor de ‘Ice Merchants’ o primeiro filme português nomeado para os Óscares  “Sou a pessoa sonhadora e criativa porque cresci num local como Santo André”

Bruno Caetano, o produtor de ‘Ice Merchants’, o primeiro filme português nomeado para os Óscares conversou com o jornal “O Leme” sobre a surpresa da nomeação e do seu percurso desde que saiu de Vila Nova de Santo André, onde vivem os pais, em busca das suas maiores paixões: a animação e a banda desenhada. Nesta entrevista, o também animador e realizador, confessou ser uma pessoa sonhadora e criativa por ter crescido em Santo André

Jornal O Leme – Quando começou a trabalhar no projeto do ‘Ice Merchants’?

Bruno Caetano – Em 2019 tive a oportunidade de conhecer o realizador João Gonzalez no Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho, o Cinanima, através de uma amiga em comum e que trabalha também na Cooperativa Cola. Começamos a falar e uns tempos mais tarde quando estávamos à procura de mais colaboradores e cooperantes para a Cola, percebemos que havia ali uma afinidade com o João – eu pessoalmente tenho um grande carinho pelo seu projeto – e quando vimos o projeto que ele tinha desenvolvido no curso e que não tinha possibilidade de o acabar porque estava a começar o primeiro confinamento devido à pandemia de covid-19 falamos na possibilidade de concorrer ao ICA – Instituto de Cinema e Audiovisual. Esforçamo- nos um pouco, mesmo financeiramente, e resolvemos investir mais um pouco para fazer mais uns segundos de animação para que a proposta tivesse uma boa qualidade. Tivemos a sorte de ficar em 1.º lugar nesse concurso e conseguimos financiamento para primeiras obras que permitiu ao João fazer o seu primeiro trabalho profissional.

L – Como foi receber a notícia da nomeação?

BC – Confesso que no início estava bastante incrédulo. Quando vi ‘Ice Merchants’ de João Gonzalez e Bruno Caetano nomeado tive ali um segundo que pareceu uma eternidade em que falei comigo próprio que isto não podia estar a acontecer. Na altura estávamos a fazer uma festa pela plataforma Zoom com os nossos amigos todos, pessoas que trabalharam no filme e até alguns pais, quando ainda estava a olhar para o ecrã e começa toda a gente aos berros é que caí em mim e foi incrível. Ainda estou a digerir o assunto porque não paramos desde então, entre entrevistas, pedidos de materiais, festivais que me estão a pedir o filme agora, ainda não deu para parar e respirar fundo. Tem sido uma aventura.

L – Desde a nomeação a vossa vida mudou?

BC – Sim e já estamos a tomar diligências para as próximas semanas. No dia 13 de fevereiro vamos ter o almoço dos nomeados com todos presentes e que tem uma característica engraçada porque os lugares são sorteados e saber que posso estar na mesma mesa que o Steven Spielberg é uma coisa que me deixa muito nervoso, até estou na duvida se vou estar extremamente calado nesse almoço ou se vou falar demasiado, não há meio termo. O Tom Cruise também está nomeado, portanto eu posso dizer que estou mais nervoso para esse almoço do que para a cerimónia dos Óscares.

L – Qual foi o seu papel neste filme?

BC – Eu sou produtor do filme, fui a pessoa que concorreu com o projeto ao ICA, que angariou financiamento, procurou co-produtores, estabeleceu contratos de distribuição e é esse o meu trabalho, acompanhar o processo todo, gerir o orçamento e gerir também os altos e baixos de uma produção. É normal quando um autor está a criar uma obra ter certezas em relação a uma coisa e estar completamente incerto em relação a outras e, enquanto cooperativa, trabalhamos em grupo, criamos reuniões para ver o que estava bem e o que poderia ser melhorado, o que é que no argumento funcionava bem e o que não funcionava, mas estivemos durante um ano e tal muito presentes na vida uns dos outros e trabalhamos muito ativamente para que o filme fosse aquele que o João tem orgulho, que quisesse realmente mostrar ao público. Verdade seja dita, acabamos o filme apaixonadíssimos por ele, mas ainda estamos surpreendidos com o percurso incrível que ele está a ter.

L – A que se deve o sucesso deste filme?

BC – É uma curta-metragem de cerca de 14 minutos e meio que conta a vida de um pai e de um filho que vivem numa casa que está num penhasco muito alto e todos os dias eles pegam no paraquedas e atiram-se para ir vender o gelo, que conseguem armazenar durante a noite, à cidade que fica num vale debaixo da montanha. Mas é lógico que isto é uma forma muito simplista de contar a ação, tem muito mais do que isto. O filme trata da capacidade que este pai e este filho lidam com a perda e como eles superam esta situação. Não posso contar muito mais do que isto.

Estamos a falar de um filme que estreou em Cannes, na Semana da Crítica de Cannes, ganhou o prémio de Melhor Curta-metragem, um feito que em 62 anos só tinha acontecido duas vezes para filmes de animação. Ganhou o grande prémio em Melbourne (Austrália), em Guadalajara (México), em Chicago, foi selecionado para festivais como o Toronto International Film Festival, foi nomeado para os Prémios Europeus de Cinema, foi nomeado para os Emmys Awards 2023 e está nomeado para os Óscares.

Eu acho que isto tudo se deve única e exclusivamente pela história do filme e a capacidade que tem de se ligar às pessoas e as pessoas se ligarem ao filme. Estamos a falar de um filme que é muito humano, muito universal, trata de uma coisa que todos nós ou sentimos ou vamos um dia sentir.

L  –  Como produtor acredita sempre no trabalho a que se dedica e este também foi o caso. Imaginava o sucesso que ele alcançou ?

BC – Não, não. A única coisa que pensamos quando acabamos um filme é se temos orgulho do que fizemos ou não, se estamos contentes com o resultado final ou não, essa é a nossa única preocupação. Depois o público e os júris de festivais e de seleção de festivais é que têm muito a dizer em relação ao percurso que fazemos. Neste caso em particular assim que fomos selecionados para a Semana da Crítica, em Cannes, ficámos logo com a “pulga atrás da orelha” e muito entusiasmados com essa situação, nunca esperamos vir a ganhar o prémio, ficámos boquiabertos, não é normal uma animação ganhar lá, foi um feito incrível. Foi a primeira vez que um filme português venceu um prémio e depois, ao longo do ano, tivemos muitos sucessos que nos deram a ideia de que o filme ia ter um percurso interessante, porque o filme acabou em 2022 com nove prémios qualificantes para os Óscares. Não há nenhum filme de animação no mundo inteiro que tenha tido tantas qualificações, o que é um bom indício só que nem pensávamos se tínhamos hipóteses nos Óscares e nem vamos pensar nisso porque o nervosismo vem logo à pele e estraga-nos a viagem. Agora temos de apreciar o percurso que vamos fazer e se tivermos a sorte dos membros da Academia gostarem do filme e votarem nele vai ser incrível, mas já chegámos aqui e já nos damos como vencedores.

L – Estudou na Escola Secundária Padre António Macedo, em Vila Nova de Santo André, de onde saiu com 18 anos. Hoje tens 43 anos e estás nomeado para um Óscar. Podemos dizer que muita coisa mudou ?

BC – Saí de Santo André para ir estudar e depois para fazer a minha vida e nessa altura ainda nem fazia animação, só a título amador, em casa e com amigos, videoclipes e coisas assim. Estudei Turismo e quando começou a ser uma coisa que já não me trazia alegria, resolvi transformar as minhas paixões, tanto a animação como a banda desenhada, comecei a trabalhar com produtoras e depois mais tarde constitui a cooperativa “Cola Animation” e a cooperativa “A Seita”, que é uma editora de banda desenhada que neste momento é uma das maiores de Portugal. Nunca pensei que conseguisse trabalhar tanto em animação como em banda desenhada e tive a sorte de, através de muito esforço e muito trabalho, chegar aqui e estar a viver estas duas coisas.

L – Qual é a importância de Vila Nova de Santo André no teu percurso?

BC – Vou a Santo André muito regularmente porque os meus pais vivem aí e posso dizer que sou a pessoa sonhadora e criativa porque cresci num local como Santo André, tínhamos espaço para sermos crianças, fazermos cabanas no Pinhal, andarmos de bicicleta para todo o lado e tínhamos uma liberdade muito grande. Acho que isso influenciou-me para sempre e tem uma presença na pessoa que sou ainda hoje em dia. Quando vou a Santo André, apesar de já não viver aí, sinto-me em casa e já vivi em muitos sítios, durante muitos anos, e nunca me senti em casa. Uma coisa que vejo que continua a acontecer em Santo André e, apesar de ser uma terra pequena, é que há espaço para as crianças serem crianças, há uma oferta cultural preocupada e presente, há eventos no Parque Central, há teatro, há boas atividades nas escolas, agora cabe a cada um aproveitá-las ou não.

Edição nº 824 de Fevereiro 2023